Acordou com o dia a esbofetear-lhe a cara. Levantou-se e esticou as asas, antes de as bater desajeitadamente como um periquito.
Ao pôr o pé na rua, foi levado por um tornado de nível quatro, juntamente com fatias de telhado, janelas, motoretas e gatos. Subiu sem parar, até atingir as nuvens. Naquele lençol antárctico banhado pelo sol estendia-se um mundo com automóveis, supermercados, restaurantes, cabeleireiros… Um mundo nada parecido com o céu - pensou com as suas pregas (pois as vestes dos anjos não têm botões).
Encontrava-se no paraíso S2 do complexo celeste, um éden de socialização de segundo grau, destinado a pessoas de nível médio-baixo: lavradores, mineiros, prostitutas… Mais acima (segundo a hierarquia celeste, inversa à da terra), situava-se o paraíso S1, o dos miseráveis, párias, índios e miúdos de barriga inchada por falta de grão de milho, que acorriam às inúmeras hamburguerias e gelatarias na esperança de desengelharem. A secção abaixo, a S3, destinava-se aos desafogados, ricos e milionários.
Perguntou por Deus a uma costureirinha que saltitava pelos campos celestes, com uma embalagem de “Molico” na mão. Que sim, que já tinha ouvido falar desse tal Senhor, mas que ninguém sabia dizer por onde andaria. Constava que por todo o lado.
Foi um ladrão de auto-rádios com um coração de manteiga (que vendia aos pobres, por 2 euros, os aparelhos roubados) quem finalmente lhO apontou, confessando que Ele de vez em quando se esquecia de estar em todo o lado, o que tornava mais difícil encontrá-Lo.
Seguiu as indicações e lá O encontrou, barba de cinco dias, olho trocista e lábios de arrependimento. Um Graciano Saga banhado pela melíflua luz das escrituras, dando despacho a uma informação de serviço sobre tributação de bens intangíveis, ladeado por Judas, o seu Ministro das Finanças.
Saudou Deus de longe e decidiu dar uma saltada ao paraíso S1, para comer um donut no “McDonalds”. Sentou-se junto duma janela para aproveitar a claridade daquele dia de Inverno. Esfregou as mãos e, com a réstia de hedonismo da antiga existência terrena, entregou-se ao desfrute da sua própria satisfação: - ´Tá-se bem!
sábado, 31 de julho de 2010
quinta-feira, 29 de julho de 2010
O milagre da multiplicação
Jesus pediu aos discípulos que alimentassem com os cinco pães e os dois peixes os mais de cinco mil homens, mulheres e crianças ali presentes.
Os discípulos começaram por hesitar. Mas perante a miraculosa multiplicação, logo começaram a distribuir alegremente à multidão agradecida as resmas de "Panikes" e de conservas “Ramirez”.
Os discípulos começaram por hesitar. Mas perante a miraculosa multiplicação, logo começaram a distribuir alegremente à multidão agradecida as resmas de "Panikes" e de conservas “Ramirez”.
quarta-feira, 28 de julho de 2010
Medo cénico
O actor era de tal forma habitado pelas personagens, que só se sentia nervoso quando tinha de voltar à realidade.
terça-feira, 27 de julho de 2010
Os mecanismos do génio
Perscrutando os mecanismos do génio, o artista mediano concluiu que Cervantes perdera um braço, Camões um olho, Van Gogh uma orelha...
E lá fez "saltar" um dos seus mindinhos.
E lá fez "saltar" um dos seus mindinhos.
Permuta (VI)
Galheteiro da cantina da Universidade de Évora permuta com barrete da cozinheira mais antiga da cantina da Universidade de Aveiro.
segunda-feira, 26 de julho de 2010
Princípio da inviolabilidade
Desrespeitando o princípio da inviolabilidade dos locais sonhados nas missões diplomáticas (previsto no artigo 22-A da Convenção de Viena sobre as Relações Diplomáticas), a Polícia de Segurança do Estado tomou de assalto o palácio das mil e uma noites em que o Conselheiro de Embaixada Aniceto Borges se encontrava quando dormia a sesta no seu gabinete.
Permuta (V)
Laje alveolada do novo pavilhão gimno-desportivo da Faculdade de Motricidade Humana de Lisboa permuta com tabela de basquetebol da Escola Superior de Educação de Castelo Branco.
sábado, 24 de julho de 2010
Ornitologia
A asa delta é um pássaro que desistiu - pensava o ornitólogo, ao observar o piloto que se despenhava.
terça-feira, 20 de julho de 2010
Um segundo
Um segundo não é a mesma coisa para o velocista que termina a corrida e para a avó que inicia a história.
domingo, 18 de julho de 2010
Exercício matinal de ginástica mental
Todos os dias, antes de levar o pão quente à mulher que ficava a rebolar-se na cama como uma morsa, ia ao miradouro imaginar o que fariam naquele dia as pessoas que acabavam de acordar na cidade grande que se estendia ao fundo.
Permuta (IV)
Estudante da faculdade de Economia da Universidade do Porto permuta com 5 euros de imobilizado incorpóreo da Tuna Feminina do ISCIA.
sexta-feira, 16 de julho de 2010
Mais alguns livros de auto-ajuda
- Manual para trair bem a sua mulher e gabar-se melhor disso.
- Dicas infalíveis para manter o mau hálito durante todo o dia.
- Guia prático para fazer hara-kiri logo à primeira.
- 20 lições para afugentar mulheres bonitas.
- Como fazer de um timorato conservador um fanático neonazi.
- Novo método para engordar como um bovino em apenas 5 dias.
- Dicas infalíveis para manter o mau hálito durante todo o dia.
- Guia prático para fazer hara-kiri logo à primeira.
- 20 lições para afugentar mulheres bonitas.
- Como fazer de um timorato conservador um fanático neonazi.
- Novo método para engordar como um bovino em apenas 5 dias.
Permuta (III)
Caloiro do Instituto Superior de Agronomia de Lisboa permuta com atrelado de tractor da Escola Superior Agrária de Bragança.
quinta-feira, 15 de julho de 2010
Esconde-esconde
Os dois miúdos brincavam ao esconde-esconde nas dunas, até que um deles se escondeu tão bem que o outro se cansou de o procurar e se foi embora.
Só ao cair da noite é que o miúdo desaparecido, farto de brincar no mar de piratas, sereias e monstros marinhos, decidiu sair do búzio e voltar para casa.
Só ao cair da noite é que o miúdo desaparecido, farto de brincar no mar de piratas, sereias e monstros marinhos, decidiu sair do búzio e voltar para casa.
terça-feira, 13 de julho de 2010
Redução de 50%
De cada vez que era lançado pelos ares na discoteca de província, o anão, embora não admitisse que lhe tirassem o ganha-pão, sentia-se um homem em saldo.
Permuta (II)
Quintanista de Direito da Universidade Nova de Lisboa permuta com cadeirão de braços do Magnífico Reitor da Universidade de Coimbra.
segunda-feira, 12 de julho de 2010
Uma nova e pequena pessoa
Zé e Maria conheceram-se no princípio do Verão, quando molhavam os pés à beira-mar.
Gostavam de comer peixe fresco. De ver as avionetas rabejando anúncios sobre a praia. De adormecer juntos na rede do palheiro onde ele guardava os apetrechos de vela e um velho frigorífico com cervejas frescas.
Deixaram de se ver com a mesma naturalidade com que se encontraram.
No fim do Verão, Maria começou a ter os primeiros sinais. Fez o teste e teve a certeza.
No início do Verão seguinte, foi à praia com a sua nova e pequena pessoa. Deitou-se para adormecer sob o delicioso lençol do fim da tarde. Um ruído de motor despertou-a. O aeroplano, furando o azul-marinho do céu, surgiu de trás do morro para atravessar a praia. Na faixa ondulante todos puderam ler, entre drapejos de luz: Maria, dá o meu nome à nossa nova e pequena pessoa. Zé.
Gostavam de comer peixe fresco. De ver as avionetas rabejando anúncios sobre a praia. De adormecer juntos na rede do palheiro onde ele guardava os apetrechos de vela e um velho frigorífico com cervejas frescas.
Deixaram de se ver com a mesma naturalidade com que se encontraram.
No fim do Verão, Maria começou a ter os primeiros sinais. Fez o teste e teve a certeza.
No início do Verão seguinte, foi à praia com a sua nova e pequena pessoa. Deitou-se para adormecer sob o delicioso lençol do fim da tarde. Um ruído de motor despertou-a. O aeroplano, furando o azul-marinho do céu, surgiu de trás do morro para atravessar a praia. Na faixa ondulante todos puderam ler, entre drapejos de luz: Maria, dá o meu nome à nossa nova e pequena pessoa. Zé.
domingo, 11 de julho de 2010
Permuta (I)
Aluno do segundo ano do ISAG do Porto permuta com empregada de limpeza da Universidade da Beira Interior.
sábado, 10 de julho de 2010
sexta-feira, 9 de julho de 2010
Diálogo idiomático
- O Vítor disse-me que o teu novo chefe é um osso duro de roer.
- É verdade, está sempre com duas pedras na mão e a pulga atrás da orelha.
- E os teus colegas, mansos como cordeiros, não?
- Claro, têm todos o rabo preso!... Enquanto isso, ele lá vai levando a água ao seu moínho.
- Até ao dia em que der com os burros na água. E o Director Geral, ampara-lhe o jogo?
- Esse? Não ata nem desata, é uma autêntica barata tonta. O outro é que põe e dispõe. Mas no fundo são os dois farinha do mesmo saco.
- E tu sempre a trabalhar como um mouro.
- Pois é, levo uma vida de cão. Mas se não der o litro, adeus minhas encomendas…
- Não podes é continuar calado como um rato. Tens de dar um murro na mesa!
- Aí é que a porca torce o rabo!... Esta semana ainda pensei pôr tudo em pratos limpos, mas decidi engolir mais uns sapos e ver onde param as modas.
(Animais presentes neste diálogo: pulga, cordeiros, burros, barata, cão, rato, porca, sapos)
- É verdade, está sempre com duas pedras na mão e a pulga atrás da orelha.
- E os teus colegas, mansos como cordeiros, não?
- Claro, têm todos o rabo preso!... Enquanto isso, ele lá vai levando a água ao seu moínho.
- Até ao dia em que der com os burros na água. E o Director Geral, ampara-lhe o jogo?
- Esse? Não ata nem desata, é uma autêntica barata tonta. O outro é que põe e dispõe. Mas no fundo são os dois farinha do mesmo saco.
- E tu sempre a trabalhar como um mouro.
- Pois é, levo uma vida de cão. Mas se não der o litro, adeus minhas encomendas…
- Não podes é continuar calado como um rato. Tens de dar um murro na mesa!
- Aí é que a porca torce o rabo!... Esta semana ainda pensei pôr tudo em pratos limpos, mas decidi engolir mais uns sapos e ver onde param as modas.
(Animais presentes neste diálogo: pulga, cordeiros, burros, barata, cão, rato, porca, sapos)
quinta-feira, 8 de julho de 2010
Ciclo onírico
A avó levou o neto à cama que levou o sono ao olho que levou o corpo ao sonho que levou a mente à luz que levou a graça ao neto que levou a avó à cama.
quarta-feira, 7 de julho de 2010
Jardim-esmola
Com a crise, cada vez mais yuppies inscreviam os filhos naquele prestigiado colégio onde se aprendia a viver de subvenções públicas.
Em frente, numa escola pequena e degradada, ciganitos, pequenos imigrantes e filhos de desempregados aprendiam a pedir esmola.
Em frente, numa escola pequena e degradada, ciganitos, pequenos imigrantes e filhos de desempregados aprendiam a pedir esmola.
terça-feira, 6 de julho de 2010
O coleccionador
Desde que em miúdo começara a coleccionar cromos e caricas que nunca mais parara.
Depois de ter coleccionado tudo o que era possível, decidiu abalançar-se a uma das colecções mais difíceis: a de órgãos humanos inúteis. Com o entusiasmo de sempre, começou a coleccionar apêndices, dentes do siso, amígdalas, cóccixes, mamilos masculinos, dedos mindinhos dos pés…
Acumulara já um riquíssimo acervo de mindinhos quando um coleccionador experiente, verdadeira autoridade na matéria, lhe lembrou que tais órgãos não contavam, pois serviam para bater nas portas e nas mesas e para encontrar objectos no escuro.
Desiludido, voltou aos cromos e às caricas.
Depois de ter coleccionado tudo o que era possível, decidiu abalançar-se a uma das colecções mais difíceis: a de órgãos humanos inúteis. Com o entusiasmo de sempre, começou a coleccionar apêndices, dentes do siso, amígdalas, cóccixes, mamilos masculinos, dedos mindinhos dos pés…
Acumulara já um riquíssimo acervo de mindinhos quando um coleccionador experiente, verdadeira autoridade na matéria, lhe lembrou que tais órgãos não contavam, pois serviam para bater nas portas e nas mesas e para encontrar objectos no escuro.
Desiludido, voltou aos cromos e às caricas.
segunda-feira, 5 de julho de 2010
Atentado
Um pequeno guincho antecede a explosão. É a voragem a um mergulho de distância. O nada a apanhar-nos a meio. Desprevenidos. Só com as meias calçadas.
Na cabeça, um intervalo. Nas pupilas, um fino raio de luz. Entre o mundo e o desconhecido, um céu de interrogação. O brevíssimo segundo antes da ausência é um anão que se agiganta. Num átimo, um átomo se torna grande como o medo.
Quando achou por bem, a morte passou e não disse nada.
Na cabeça, um intervalo. Nas pupilas, um fino raio de luz. Entre o mundo e o desconhecido, um céu de interrogação. O brevíssimo segundo antes da ausência é um anão que se agiganta. Num átimo, um átomo se torna grande como o medo.
Quando achou por bem, a morte passou e não disse nada.
domingo, 4 de julho de 2010
A porta
Isolada no meio do campo, a porta convidava a entrar. Desde que limpasse os pés à entrada, todo o habitante da cidade era bem-vindo àquele prado fresco que se deixava escorregar suavemente até ao ribeiro.
quinta-feira, 1 de julho de 2010
O saco de plástico
Tinha na mão um saco de plástico que lhe fora útil, mas de que já não necessitava.
Olhou para aquele espaço soprado onde cabem todos os objectos e a conveniência do homem e percebeu que o saco de plástico é um objecto omnipresente. Que atrás de cada saco de plástico há uma extensa fila de sacos de plástico à espera de vez. Que até no paraíso mais intocado rola um saco de plástico, despreocupado, como se não fosse nada com ele. Que milhares de pedaços de saco de plástico gravitam à volta da terra, enrodilhando-se nas lentes ópticas dos satélites. Que no dia em que todos os habitantes da terra se passearem com um saco de plástico na mão se terá atingido a democracia total.
Tinha tratado bem aquele saco de plástico. Chegara mesmo a levá-lo a um piquenique, que é onde os sacos de plástico se sentem mais felizes, perante a perspectiva de saírem a esvoaçar, livres e loucos, por entre pinheiros e eucaliptos.
Mas agora queria ver-se livre dele.
Só que cedo percebeu que seria difícil - se não mesmo impossível - fazê-lo desaparecer, pois um saco de plástico, ainda que não o mereça, dura mais do que a vida. Não se gasta, amarrota-se. Não se acaba, delonga-se: incorruptível, indestrutível, mais perene do que o tempo.
Se o levasse com ele para um maciço da Antártida, com ele haveria de voltar. Se o enterrasse, logo uma das alças afloraria à superfície. Se o deixasse a arder, iria retorcer-se de raiva e lançar-lhe um ominoso fumo negro que lhe intoxicaria a alma.
Só teve uma saída: foi pô-lo a dançar ao vento.
Olhou para aquele espaço soprado onde cabem todos os objectos e a conveniência do homem e percebeu que o saco de plástico é um objecto omnipresente. Que atrás de cada saco de plástico há uma extensa fila de sacos de plástico à espera de vez. Que até no paraíso mais intocado rola um saco de plástico, despreocupado, como se não fosse nada com ele. Que milhares de pedaços de saco de plástico gravitam à volta da terra, enrodilhando-se nas lentes ópticas dos satélites. Que no dia em que todos os habitantes da terra se passearem com um saco de plástico na mão se terá atingido a democracia total.
Tinha tratado bem aquele saco de plástico. Chegara mesmo a levá-lo a um piquenique, que é onde os sacos de plástico se sentem mais felizes, perante a perspectiva de saírem a esvoaçar, livres e loucos, por entre pinheiros e eucaliptos.
Mas agora queria ver-se livre dele.
Só que cedo percebeu que seria difícil - se não mesmo impossível - fazê-lo desaparecer, pois um saco de plástico, ainda que não o mereça, dura mais do que a vida. Não se gasta, amarrota-se. Não se acaba, delonga-se: incorruptível, indestrutível, mais perene do que o tempo.
Se o levasse com ele para um maciço da Antártida, com ele haveria de voltar. Se o enterrasse, logo uma das alças afloraria à superfície. Se o deixasse a arder, iria retorcer-se de raiva e lançar-lhe um ominoso fumo negro que lhe intoxicaria a alma.
Só teve uma saída: foi pô-lo a dançar ao vento.
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