sábado, 31 de outubro de 2009

Schengen celestial

No seu posto de controlo, São Pedro interceptou um sacristão envolvido em tráfico de indulgências. Bem representado por Judas, o sacrista logo interpôs recurso.
Deus, na sua infinita misericórdia, deu-lhe ganho de causa.

sexta-feira, 30 de outubro de 2009

As mentiras dos homens

Estava farto das mentiras dos homens. Não percebia como é que as viagens “a partir de…” ficavam sempre acima do valor indicado.

Médio Oriente

- Ó Stôra, tenho uma solução para acabar com a Intifada.
- Diz lá então, Miguel…
- É chegar lá e arrelvar aquela porcaria toda!

quinta-feira, 29 de outubro de 2009

Olhar contemplativo

Ao passear no parque, viu duas crianças a agredirem-se com carrinhos de ferro.
Ficou a observar, absorvido, os golpes, os gritos e o colorido das testas.
Admirado o espectáculo, retomou o passeio para ir poisar o olhar no movimento dos esquilos e das folhas que caem à vez.

quarta-feira, 28 de outubro de 2009

Cacos

Farto da situação, decidiu pôr tudo em pratos limpos e dar um murro na mesa.

segunda-feira, 26 de outubro de 2009

Testamentando

A velhota deslocava-se ao notário várias vezes por semana para alterar o testamento: ora acrescentava um passe-vite, ora retirava um periquito…
Sentia-se assim mais viva, a agitar permanentemente os termos da morte.

As mãos que crescem

Tinha a certeza de que aquele livro da sua meninice - que acabava de encontrar no sótão - era então muito maior.

domingo, 25 de outubro de 2009

Ladrão que rouba a ladrão...

Toda a vida tinha roubado.
Agora, na velhice, levavam-lhe tudo: a vista, o cabelo, a dentição, o vigor…

sexta-feira, 23 de outubro de 2009

Boas recordações

Graças às boas recordações, a morte que o chamava quase lhe parecia boa.

quinta-feira, 22 de outubro de 2009

As vinhas do IRA

As garrafas com pavio voltearam no ar e inflamaram-se nas mãos do barman.
No outro balcão do bar, o colega irlandês levou as mãos à cabeça:
- Tinha-o proibído de me mexer nas garrafas!

Tempos modernos

Passava a vida a entrar e a sair do micro-ondas.

quarta-feira, 21 de outubro de 2009

Provas de amor

Apaixonaram-se num combate de boxe, entre olhares de desafio.
Amavam-se tanto que tinham vontade de se esganar. De se bater como curtidor abrutalhado bate em pele de cordeiro.
Casaram-se um contra o outro, com um padre a arbitrar.
Na arena conjugal, combatiam sem gongo e limite de assaltos. Ela, enqueixando com alegria cotoveladas-relâmpago à hora da sopa. Ele, ansiando com infante comichão a canelada certeira que o córneo pezinho dela tão bem sabia atirar.
Nos dias mais quentes, beliscavam-se à sombra da árvore-chorão em que tinham gravado ameaças de morte com navalhinhas de tortura.
Assim viveram durante anos: feridos, feros e felizes.
Certo Outono, chegaram os arrependimentos: os filhos cujo parto ela deveria ter sofrido, os banhos que não chegaram a dar em afogamento, o Rotweiller que não o mordera com a devida gana…
Ele fez anos em Novembro. Recebeu três chapadões. Em seguida, terrina de Porches (bem robusta, por sinal) no meridiano de Greenwich da nuca.
Derradeiro gesto de amor. Já não lhes deu gozo.
Na semana do Natal, o primo dele começou a tratar dos papéis do divórcio.

terça-feira, 20 de outubro de 2009

Livro de horas

Tinha um livro, ricamente ilustrado, com piadas obscenas para as diferentes horas do dia.

Animação de casamento

A festa de casamento não tinha animadores, DJ´s, humoristas, ilusionistas, sevilhanas ou karaoke.
Os noivos tinham escolhido para a boda uma única atracção: o Poço da Morte.

segunda-feira, 19 de outubro de 2009

A sorte a passar em passing shot

Sempre fora o rapaz da toalha. Nunca tivera a raqueta na mão.

O filho

Um guizo convoca vacas e pastores.
As duas caravelas do tamanho de azeitonas descobrem um Novo Mundo a cada minuto que passa. Refegos tremem como gelatina, na inocente satisfação de quem descobre a vida.
Cuidado! Pode chegar a cegar, o brilho dos olhos de um bebé que ri.
Nascido o filho, que carrega o devir nas bochechas, a mãe deixa de ser só ela. E o pai, mordendo a perna tenra com um carinho voraz, volta de novo a ser criança.

sexta-feira, 16 de outubro de 2009

O livro

O sem-abrigo fazia a sua habitual ronda pelo lixo. Encontrou um livro amarelecido, que lhe pareceu familiar. “A indigência como fenómeno social fracturante” era o título da obra que escrevera vinte anos antes, enquanto promissor sociólogo saído de uma família com tradições, alicerçada num ambiente cultural privilegiado.

quinta-feira, 15 de outubro de 2009

Mais só do que louco

Quarenta e dois dólares de temperatura, calor infernal! Mais com menos dá mais, que é mais do que menos com mais… São nove e vinte na moeda nova… nove e meia na moeda nova… Estrondoso! Estrondoso!

quarta-feira, 14 de outubro de 2009

Ritual

Com a paciência e a minúcia de quem desenha um urso panda num fio de cabelo, segmentou cuidadosamente em pequeníssimas porções o corpo da mulher que o traíra e com elas confeccionou o sushi mais requintado, que foi degustando, na companhia dos clientes especiais, ao sabor das subtis mutações da folha da cerejeira.

terça-feira, 13 de outubro de 2009

O 13 de Outubro na imprensa da época

À uma da tarde de ontem, a chuva parou, sem que o meteorologista Anthímio de Azevedo o tivesse previsto. Diante da multidão reunida na Cova da Iría, que ansiosamente buscava o céu e açoitava a moleirinha à espera da reedição do milagre, o sol dançou o twist, bamboleando as suas ancas de mulata como nenhum outro astro o havia feito até então. A luz ganhou um formoso tom de azul sabão-macaco e, como combinação de viúva, espalhou-se sobre os crentes ajoelhados, que exclamavam, num deslumbre: “Que lindo! Tanto efeito especial!”

“Diário da Manhã”, 14/10/1917

segunda-feira, 12 de outubro de 2009

Merchandising

À época, no século I a. C., o perfil de Cleópatra já figurava em canecas e aventais.

domingo, 11 de outubro de 2009

Auto-diversão

O louco que falava sózinho ria-se do que dizia, assegurando assim a sua dose de diversão diária.

sábado, 10 de outubro de 2009

Galope

A rapariga fixa a cor do semáforo, vermelho impeditivo que tem por dogma de fé. Pés fincados na borda do passeio, abana obsessivamente o tronco para trás e para a frente. É atleta à partida de prova de meio fundo, touro preparando a arremetida contra o pano vermelho que lhe cega as fuças.
Muda o sinal. Com o verde a inundar-lhe o cérebro, a credora de Deus arranca então, num galope de dentes cerrados, para a vida que a espera na outra ponta da passadeira.

quinta-feira, 8 de outubro de 2009

Chuva ácida

Recusando ser asas de anjo ou algodão-doce, as nuvens devolviam aos homens o seu fel.

quarta-feira, 7 de outubro de 2009

O violador

Segundo familiares e amigos, nada no seu comportamento faria supor um tal desvio. A não ser talvez o hábito - assinalado pela cunhada - de espreitar debaixo das saias das bonecas da sobrinha.

terça-feira, 6 de outubro de 2009

O reformado ladrão

Só levava para casa anões de jardim. Não por serem valiosos, mas por serem da sua idade.

domingo, 4 de outubro de 2009

Precisa-se

Mortos não comprometidos, com menos de 1,70 m de altura, para dar vazão a stock remanescente de caixões de pinho.

sábado, 3 de outubro de 2009

Mundo

Tinha tanto desejo de mundo, que via contornos de continentes nas manchas da parede da cela.

sexta-feira, 2 de outubro de 2009

Coelhinho da Duracell

O velho sambista de bacia ligeira sacode o corpo magro na roda de samba. À sua frente, uma morena-flor de depósito cheio, carburando litros de vida.
O velho da palhinha malandra sente-lhe as vibrações das nádegas, borboleta de colecção que em sensuais tremores de terra põe em alerta a sua protecção civil.
Insecto gozando as últimas horas de luz e vida, batuca um derradeiro par de vezes e, gastas as pilhas, cai no tapete da alegria popular.
É Carnaval, ninguém leva a mal.

quinta-feira, 1 de outubro de 2009

O polícia-sinaleiro

O trânsito estava confuso, desordenado, aos soluços. Ninguém percebia que indicações estava o polícia-sinaleiro a dar.
Até que o surdo-mudo da carrinha branca lhe respondeu.

Família numerosa

Já iam em cento e oitenta dedos. E ainda contavam somar mais vinte ou quarenta.