segunda-feira, 31 de maio de 2010

Prata

Dobrados pela pobreza, os camponeses repovoam a cidade mineira, trazendo ilusões que o vento andino irá levar.
Ernesto sabe que a pouca prata mal dá para comer, mas todas as noites sonha sonhos prateados, à luz da vela do nicho feito de pedras da montanha. Aquela pequena chama, que arde como a luz de presença de um altar, é a esperança débil e poupada que o mineiro vai alimentando, enquanto mergulha o corpo seco na mina voraz.
Até ao dia em que tomba na esteira com os pulmões comidos pelo pó da quimera.
No momento em que desencarna, a sua alma é surpreendida pela luz da vela, revelando-se uma alma mirrada.
Não admira. Apesar de esperançada, vivera demasiado tempo num corpo atarracado.

sexta-feira, 28 de maio de 2010

Teste de história

Em resposta à questão sobre a organização feudal na Idade Média, o autista escreve na última linha, como um robô da primeira geração: Na Idade Média virar à direita.

quinta-feira, 27 de maio de 2010

Celebração

Altivos e satisfeitos, os canibais festejavam como se tivessem o Rui na barriga.

quarta-feira, 26 de maio de 2010

Homem de guarda

Cuidado com o homem - dizia a placa afixada à entrada da caverna dos chacais.

Timidez

O momento de maior intimidade que partilhara com uma rapariga fora a leitura do letreiro de um quadro num museu.

terça-feira, 25 de maio de 2010

Pudim Molotov-Ribbentrop

Ingredientes: 250 gramas de realpolitik; 1 chávena de mentira; 2 colheres de sopa de rancor; 1 pitada de perfídia.
Misture os ingredientes de forma calculista. Deixe esturricar até ganhar bispo. Sirva bem frio (como a vingança), acompanhado de um mau vodka polaco.

Pudim McLuhan

Ingredientes: 150 gramas de globalização; 2 chávenas de tecnologias de informação e comunicação; 1 colher de sopa de interconectividade; bastante cidadania global.
Misture bem os ingredientes num lap-top, até obter um caldo societal. Tempere com um pouco de utopia. Acompanhe com duas fatias de pão da aldeia (global).

domingo, 23 de maio de 2010

Reparando bem

- Já repararam que os bebés abandonados aparecem sempre bem alimentados?
Ainda nenhum dos presentes tinha reparado. Havia muitas coisas em que só ele reparava: que os cães nunca são atropelados nas passadeiras, que os estacionamentos para deficientes estão sempre vazios, que as tradutoras de linguagem gestual da televisão nunca se enganam, que nas festas dos jardins-escola há sempre mais bebida do que comida…
Um dia, um amigo de longa data atirou, sem mais:
- Já repararam que quando se fala de um homem há sempre outro presente que andou com ele na tropa?
Estremeceu de surpresa. Ainda não tinha reparado.
Desiludido, deixou de reparar.

sexta-feira, 21 de maio de 2010

Na galeria

Na galeria, perante um público ávido de novidades, expunham-se, em carne e osso, imigrantes ilegais, toxicodependentes a ressacar, sem-abrigo embrulhados em papelão e professores cansados.
A exposição foi um enorme sucesso, com os críticos a salientarem a beleza plástica do evento e o seu indiscutível interesse social.

quinta-feira, 20 de maio de 2010

Homo homini lupus

Frequentava o circuito de manutenção para fazer vítimas ao anoitecer.
Acabou vítima de um tarado que frequentava o circuito de manutenção para fazer vítimas ao anoitecer.

Teatro de ponto

No palco, cinco pontos sussurravam o texto uns aos outros.
Mesmo sem nada ouvir, o público assistia entretido ao jogo das bocas que sopravam falas e das orelhas que se esticavam todas para melhor as receber.

quarta-feira, 19 de maio de 2010

A árvorestruz

A árvorestruz tinha ramos, folhas e frutos. Mas de cada vez que se aborrecia, desatava a correr pelos campos fora, perante o olhar invejoso das outras árvores do pomar. Satisfeitos, os miúdos corriam atrás dela, apanhando as maçãs que deixava cair.

terça-feira, 18 de maio de 2010

Concerto para flauta e orquestra de bicos

Depois das aulas, o garotinho gostava de ir oferecer ao campo os sons da sua flauta de cana.
Assim conheceu o paul os seus dias de maior alegria. Com os pássaros no balcão de ramos e os sapos mais abaixo, na plateia.
Um dia, o miúdo não levou a flauta. Deitou-se debaixo da tília do costume e limitou-se a receber aquele presente simples sem passado.
Foi então que a habitual melodia do pífaro começou a ser chilreada por uma miríade de bicos, num concerto com arranjos de água e acordes de mel.

segunda-feira, 17 de maio de 2010

Suplente de lixo

Uns passos atrás da mulher rica, o cachorro vadio aguarda, com o oportunismo dos desvalidos, o providencial enfarte do canídeo de ostentação.

eBay

Um barbeiro da Leirosa decidiu leiloar em linha o seu rico espólio capilar, com destaque para um tufo do bigode do António Sala (base de licitação: 2 USD e um par de sabrinas) e uma miscelânea capilar dos jogadores Chalana, Pietra e Carlos Manuel (base de licitação: 97 rupias e um açafate de molas).

sexta-feira, 14 de maio de 2010

Provérbio invertido

Muito siso, pouco riso.

quinta-feira, 13 de maio de 2010

O velho anarca

Recusava-se a pagar a taxa de televisão e recompensava o filho pelos castigos na escola.
De resto, um simples burguês com madeixas rebeldes.

terça-feira, 11 de maio de 2010

Seca

Na vila minguada do Nordeste brasileiro, há pobreza em vez de água. No terreiro da poupada capela, sertanejos de bocas chupadas e olhos sujos despistam a vida. Trazendo na ideia um amazónico rio.
Sonharão à noite pingos de água nos pés de feijão. O feijão que cada escadinha de filhos implora à mãe seca.
Ali, a seca é fome. E a fome é o Brasil perdendo no Maracanã, a cada minuto que passa, uma final da “copa” do mundo.

segunda-feira, 10 de maio de 2010

Citius, Altius, Fortius

Na IIª edição dos Jogos Espartanos, que decorreu em 1941 em Dresden, o campeão austríaco Hans Baggerman conquistou duas medalhas de ouro nas provas de lançamento de idoso (sem cajado) e de arremesso de criança poliomielítica.

domingo, 9 de maio de 2010

Facebook

Carminho Brandão Mello acaba de aderir ao grupo "Já tinha idade para ter juízo mas não me apetece".

sábado, 8 de maio de 2010

Existencialismo venezuelano

Só se apercebeu de que não existia quando descobriu que o irmão era filho único.

O sósia

Há 20 anos que tentava imitar na perfeição o cantor Claude François. Sem sucesso.
Foi no momento em que sofreu o choque fatal na banheira que a mulher lhe divisou na face a exacta expressão do ídolo que há tanto tempo procurava.

sexta-feira, 7 de maio de 2010

Sem papéis

Mingo não tem papéis. É um simples número que sua. Trabalho infantil de adulto. Negritude guineense caiada por pós e tintas. Castelo firme de braços doloridos.
Gostava de ver na TV o Jerry a vencer o Tom. Mas no trabalho era ao contrário: desenhos desanimados de ratos mortiços dominados por gato omnipotente e gozão.
Quando Mingo caiu do andaime, quem viu fingiu que não viu. O seu corpo-contentor tombou à margem. Vento cortado na visão periférica do capataz, mercador da dor de homens numerados.
Taparam com cimento o buraco com recheio de homem.
No dia seguinte, no exacto local do acidente, brotou do cimento uma pequeníssima flor amarela, prontamente pisada pelas botas rochosas do capataz.

Romeu e Julieta

Ao entrar no quarto do hospital contra a vontade de médicos e enfermeiros, o velhote julgou que a sua amada - colocada horas antes em coma induzido - tinha morrido. Desgostoso, bebeu de um trago a garrafa de bagaço que o compadre Felício lhe oferecera e teve o AVC fatal. Ao acordar, a velhota viu o corpo sem vida do seu bem-amado e contraiu ali mesmo uma bactéria multi-resistente.
E assim termina a história do amor impossível entre dois idosos.

quarta-feira, 5 de maio de 2010

Migrações

Os alces seguem para o Norte. Os gansos, para o Sul. Os emigrantes, para latitudes bem mais interiores.

terça-feira, 4 de maio de 2010

Partilhas

Saiu do advogado satisfeito por ter conseguido garantir o quinto terço da herança.

segunda-feira, 3 de maio de 2010

Copyright

Com receio de ser plagiado, o pássaro nunca canta tudo o que sabe.

Fronteira de mundos

Na comunidade aborígene, até os cães arrastam diabetes. As doenças como convidados de honra daquele centro de tristeza subsidiada.
Os aborígenes ali estão, à mercê das tempestades de areia que lhes tapam o futuro, lançando-lhes grãos de solo colonizado para os dentes.
À entrada da gruta-matriz por onde os confins do tempo um dia se internaram, Vern Nariva toca didgeridoo, a hélice profunda que eleva o espírito dos aborígenes.
Jimmy, o filho mais novo, sente a pedrada dos fumos. Corpo descerebrado movido a gasolina com chumbo. Mais que maluco, mal louco. Ele e os outros, maçãs com remédio em cela desmemoriada reservada aos viciados em gasolina. Formigas sugadas por urso-formigueiro do seu mundo morno e sábio.
Na fronteira desse mundo com o mundo onde compra a aguardente, Vern Nariva, corpo pintado contra as estatísticas de doença e morte, aponta para o horizonte ébrio do deserto: - Aquele é o meu país.