terça-feira, 29 de setembro de 2009
Vénia
Quando passava na EN 125, perto da Lagoa, foi saudado com uma vénia por uma daquelas piscinas que passam o dia em pé.
segunda-feira, 28 de setembro de 2009
Brincadeiras perigosas
Levitando sobre a areia da praia que reflectia o luar, os pequenos vampiros arriscavam a vida a jogar ao jogo do prego.
Poço das desilusões
Mergulhava debaixo da ponte de ferro à procura de anéis de noivado, medalhinhas com retrato e corações partidos.
Chegado a casa, guardava os sinais de desgosto numa vitrina, junto das ânforas, dos dobrões de ouro e de outras relíquias subaquáticas.
Chegado a casa, guardava os sinais de desgosto numa vitrina, junto das ânforas, dos dobrões de ouro e de outras relíquias subaquáticas.
sábado, 26 de setembro de 2009
Aditivos
Há mais de três horas que andava de bar em bar, tomado pela tristeza, a ingerir aditivos para a alma. Era já o sexto bar em que entrava. Sentou-se ao balcão e pediu um copo de E330 com duas pedras de gelo.
- E330 já não temos. Tem-se bebido muito. Se quiser um batidinho de espessantes…
Pediu antes um refresco de edulcorante com gás, bebida que já o falecido pai, apreciador do sabor acidulado do E950, tinha por hábito degustar após um longo dia de trabalho.
Sorvendo o refrigerante, lançou mágoas ao barman. Desde que a mulher o trocara pelo açougueiro do talho da esquina que ganhara o hábito de lançar mágoas ao barman. Coisa de filme negro de terceira categoria.
Mudou de bar. Não de mágoas.
Sentou-se na mesa do canto, pediu a lista de cocktails de aditivos e pasmou: desde o “Blue Fizz” de glicina e emulsionantes, até ao “Bella Ragazza” de inosinato dissódico e estearato de magnésio, passando pelo “Nuvem Branca” de fosfatidato de amónio e lactilato de propano, com duas gotas de monopalmitato de sorbitano, a lista era vasta e rica, feita para agradar aos gostos mais extravagantes. Ele é que não apreciava tão exóticos ingredientes, criado que fora a corantes e conservantes.
Pediu o Cocotini E472, pois não lhe desagradava de todo o sabor dos ésteres mistos acéticos e tartáricos. Mas bebeu-o sem prazer, a pensar que, naquele preciso momento, as rudes manápulas do açougueiro estariam a untar, com nitritos e nitratos, as ancas desenhadas a ponta de pluma da sua Ermelinda.
Estava velho. Ainda era do tempo em que se podia entrar num café e pedir um simples néctar de ácido ascórbico.
- E330 já não temos. Tem-se bebido muito. Se quiser um batidinho de espessantes…
Pediu antes um refresco de edulcorante com gás, bebida que já o falecido pai, apreciador do sabor acidulado do E950, tinha por hábito degustar após um longo dia de trabalho.
Sorvendo o refrigerante, lançou mágoas ao barman. Desde que a mulher o trocara pelo açougueiro do talho da esquina que ganhara o hábito de lançar mágoas ao barman. Coisa de filme negro de terceira categoria.
Mudou de bar. Não de mágoas.
Sentou-se na mesa do canto, pediu a lista de cocktails de aditivos e pasmou: desde o “Blue Fizz” de glicina e emulsionantes, até ao “Bella Ragazza” de inosinato dissódico e estearato de magnésio, passando pelo “Nuvem Branca” de fosfatidato de amónio e lactilato de propano, com duas gotas de monopalmitato de sorbitano, a lista era vasta e rica, feita para agradar aos gostos mais extravagantes. Ele é que não apreciava tão exóticos ingredientes, criado que fora a corantes e conservantes.
Pediu o Cocotini E472, pois não lhe desagradava de todo o sabor dos ésteres mistos acéticos e tartáricos. Mas bebeu-o sem prazer, a pensar que, naquele preciso momento, as rudes manápulas do açougueiro estariam a untar, com nitritos e nitratos, as ancas desenhadas a ponta de pluma da sua Ermelinda.
Estava velho. Ainda era do tempo em que se podia entrar num café e pedir um simples néctar de ácido ascórbico.
sexta-feira, 25 de setembro de 2009
Uma fotografia
Esta tirei-a há uns cinco anos, no casamento do Rafael. Foi numa quinta ali para os lados da Sertã. Lembro-me bem, porque ainda estava com a Elsa. Fotografei o fotógrafo a fotografar os noivos, com o Tóni e a mulher ao lado. Vês aquele miúdo lá atrás? É o meu mais novo, com os joelhos sujos de erva. E este aqui, todo desfraldado, é o irmão da Elsa, o Ramiro, já bem bebido. Gosto desta fotografia porque me lembra a Elsa viva.
quinta-feira, 24 de setembro de 2009
Breve compêndio de casais
O casal: par de recém-casados à procura de casa.
O casalinho: duo de irmãos de sexo oposto.
O casalito: par de namorados desenxaibidos.
O casal amigo: o que passa férias connosco.
O casal nota 10: o que todos invejam, mas que também tem os seus podres.
A Casal: marca portuguesa de motorizadas.
O casal McCann: aquele de que o ex-inspector Gonçalo Amaral desconfia.
O casal Garcia: Adalberto Garcia e Lucinda Garcia.
O casalinho: duo de irmãos de sexo oposto.
O casalito: par de namorados desenxaibidos.
O casal amigo: o que passa férias connosco.
O casal nota 10: o que todos invejam, mas que também tem os seus podres.
A Casal: marca portuguesa de motorizadas.
O casal McCann: aquele de que o ex-inspector Gonçalo Amaral desconfia.
O casal Garcia: Adalberto Garcia e Lucinda Garcia.
terça-feira, 22 de setembro de 2009
Agorafobia
Ficou três dias fechado lá fora, sem poder entrar em casa. Foi salvo ao quarto dia pela mulher, que deu com ele, exausto e amedrontado, a cavar uma toca.
Doentinha
De tão queixosa, quando falava no seu Sargenor já ninguém sabia ao certo se estaria a referir-se ao marido ou ao medicamento.
segunda-feira, 21 de setembro de 2009
Bovinos
É a morte que dá vida ao matadouro.
Com o primeiro choque a vaca ajoelha no chão, como que pedindo perdão aos antepassados pela vida mínima que levou. Ao terceiro choque, despede-se com olhos meigos do funcionário que lhe dera duas palmadas no lombo antes de premir o botão.
São bons os bovinos. Melhores de sentimentos do que de sabor.
Com o primeiro choque a vaca ajoelha no chão, como que pedindo perdão aos antepassados pela vida mínima que levou. Ao terceiro choque, despede-se com olhos meigos do funcionário que lhe dera duas palmadas no lombo antes de premir o botão.
São bons os bovinos. Melhores de sentimentos do que de sabor.
sábado, 19 de setembro de 2009
O voo
Tinha pisado o cardo de fogo deixado pela guerra quando ia a caminho da escola.
Sempre quisera ser piloto de aviões e futebolista. Mantinha essa vontade. A perna não.
Nas suas palavras planadoras, o desejo de subir tão alto como a sua ex-perna: - Quero acreditar como esse avião grande anda sem abanar as asas.
Mas o único voo foi o da mina.
Sempre quisera ser piloto de aviões e futebolista. Mantinha essa vontade. A perna não.
Nas suas palavras planadoras, o desejo de subir tão alto como a sua ex-perna: - Quero acreditar como esse avião grande anda sem abanar as asas.
Mas o único voo foi o da mina.
quinta-feira, 17 de setembro de 2009
A pomba e a gaivota
Ao cruzar-se com a reluzente pomba da paz, a gaivota sacudiu o alcatrão das penas e, olhando para cima, desabafou:
- Pois é, há filhos e enteados!
- Pois é, há filhos e enteados!
quarta-feira, 16 de setembro de 2009
Dilúvio
Os habitantes da pequena localidade atreita a tornados e trombas de água assistiram, assombrados, a uma repentina chuva de sapos. Dois dias depois, caíram peixes. Na semana seguinte, abateram-se sobre eles, com uma força inaudita, milhares de advogados estagiários.
terça-feira, 15 de setembro de 2009
Notícia de um jornal local
Ao fim da tarde de ontem, na rotunda dos Fornos, o carro da Funerária Armindo embateu numa carrinha frigorífica que descarregava peças de carne. O condutor do veículo funerário, sobrinho do senhor Armindo Faria - a quem aproveitamos para enviar daqui as nossas saudações - saiu ileso. O único ferido a registar foi o morto, imediatamente conduzido para o Hospital da Misericórdia onde, até à hora de fecho desta edição, se encontrava em situação estável.
segunda-feira, 14 de setembro de 2009
Luta de sumo
Os dois rikishis estudam-se mutuamente. Empurram-se como dois ursos da Ilha de Hokkaido e agarram-se pelas faixas. Perante o entusiasmo da assistência, derrubam-se um ao outro e caem ao mesmo tempo no dohyo, num estrondo de massas brutas.
Deitados no tapete, olham-se com olhos ternos, agarram-se de novo e beijam-se apaixonadamente.
Deitados no tapete, olham-se com olhos ternos, agarram-se de novo e beijam-se apaixonadamente.
domingo, 13 de setembro de 2009
sexta-feira, 11 de setembro de 2009
Como peixe na mágoa
O rapaz sai para o mar no barco insuflável. Recosta-se na borracha morna e fecha os olhos. Enquanto imagina como seria bom ser um peixe na corrente, sem trabalhos rotineiros e despertares madrugadores, vai riscando a água com dois dedos, mesmo junto a peixe de barriga envenenada virada para o sol.
quinta-feira, 10 de setembro de 2009
Matraquilhos
Não percebia porque é que tinha perdido tantos jogos seguidos. Até que reparou que os seus bonecos do meio-campo conversavam alegremente entre si.
quarta-feira, 9 de setembro de 2009
A mosca
Depois de esvoaçar umas horas pelo bar, a mosca mergulhou de cabeça no copo de uísque. Queria saber o que tanto atraía os homens naquele líquido.
terça-feira, 8 de setembro de 2009
Tapando a lua
O miúdo que caçava estrelas queria ser o primeiro a tapar a lua.
Durante dias, esperou que ela enchesse. Quando se preparava para lançar a colcha da cama até lá acima, deu-se o eclipse.
Ao contrário dos outros, o miúdo ficou triste. Alguém tapara a lua antes dele.
Durante dias, esperou que ela enchesse. Quando se preparava para lançar a colcha da cama até lá acima, deu-se o eclipse.
Ao contrário dos outros, o miúdo ficou triste. Alguém tapara a lua antes dele.
segunda-feira, 7 de setembro de 2009
O fungo
Quis o destino que tivesse de permanecer mais três dias na pequena ilha das Caraíbas onde se deslocara para uma reunião de negócios.
A decadência do hotel saltava à vista debaixo da tinta apressada, como marreca de velha senhora sob estola com cheiro a armário. Era um hotel como todos os outros, mas com duas particularidades: tinha obras nos corredores e um fungo nas paredes, um musgo acastanhado que libertava um líquido amarelo.
Passou dois dias a aborrecer-se, a ler policiais e a confirmar as conclusões que a sua larga experiência de hotéis há muito lhe permitira tirar: que 90% dos hóspedes nadam devagarinho e jogam mal ténis e que o bar da piscina nunca tem barman.
Ao fim do segundo dia, tomado por uma modorra tão pardacenta como o musgo da parede, deitou-se vestido e adormeceu com o Have a nice day, sir! a martelar-lhe a cabeça.
Horas depois, o fungo insidioso, que já ocupara as pernas da cama, começou a cobrir-lhe o pé direito, trepou pelo tornozelo e continuou a subir.
Antes de lhe entrar pelos ouvidos, ainda ouviu uma voz dizer, do lado de lá da porta: Have a quiet evening, sir!
A decadência do hotel saltava à vista debaixo da tinta apressada, como marreca de velha senhora sob estola com cheiro a armário. Era um hotel como todos os outros, mas com duas particularidades: tinha obras nos corredores e um fungo nas paredes, um musgo acastanhado que libertava um líquido amarelo.
Passou dois dias a aborrecer-se, a ler policiais e a confirmar as conclusões que a sua larga experiência de hotéis há muito lhe permitira tirar: que 90% dos hóspedes nadam devagarinho e jogam mal ténis e que o bar da piscina nunca tem barman.
Ao fim do segundo dia, tomado por uma modorra tão pardacenta como o musgo da parede, deitou-se vestido e adormeceu com o Have a nice day, sir! a martelar-lhe a cabeça.
Horas depois, o fungo insidioso, que já ocupara as pernas da cama, começou a cobrir-lhe o pé direito, trepou pelo tornozelo e continuou a subir.
Antes de lhe entrar pelos ouvidos, ainda ouviu uma voz dizer, do lado de lá da porta: Have a quiet evening, sir!
Derrota inglória
Durante o VI Campeonato Europeu de Carregamento da Esposa, Jorge Neves teve uma discussão com a cara-metade (por causa de um fim de semana em casa dos sogros) que lhe custou a revalidação do título.
domingo, 6 de setembro de 2009
História infantil
O pequeno coelho faz tudo como o papá coelho. Ele come como o papá coelho. Ele veste-se como o papá coelho. Ele fuma como o papá coelho. Ele insulta a mamã como o papá coelho. Mas quando se trata de ir desentupir retretes e alombar com sacos de cimento, o pequeno coelho já não tem vontade de fazer como o papá coelho.
sexta-feira, 4 de setembro de 2009
O cerra-fila
Nasceu depois do irmão gémeo. Sentou-se na última fila da sala de aula. Marchou no fim do pelotão. Conduziu carros-vassoura em provas de ciclismo. Fechou procissões. Até ao dia do seu cortejo fúnebre, em que teve de ir no meio.
quinta-feira, 3 de setembro de 2009
O bidé
Tendia a ficar deprimido, sem razão aparente que o justificasse.
Certa manhã, teve vontade de lavar os dentes no bidé. Desconfiado, temeu que estivesse a chegar mais uma depressão. Quando começou a lavar os sovacos no bidé, teve a confirmação. Passou a barbear-se no bidé, a lavar a cara no bidé, a fazer toda a higiene pessoal no bidé. O bidé bastava-lhe. Estava feito à sua medida. Tinha a dimensão exacta da sua pequenez dobrada em concha.
Uma semana depois, um amigo emboscou-o na rua e inquiriu-o de coisas:
- Então, Carlos, que tal vai isso?
- Nada bem… olha, ando outra vez a fazer tudo no bidé.
- É pá, isso é que é pior!
Nessa noite, durante aquele estado indefinido entre a vigília e o sono, imaginou-se a cortar os pulsos no bidé. A ver o fio de sangue na volta de despedida antes de seguir pelo ralo.
Levantou-se, dirigiu-se ao bidé para gorgolejar e sentiu vontade de cortar os pulsos naquela peça de louça criada pelo preguiçoso engenho da burguesia.
Mas resistiu a deixar escorrer a vida pelo bidé. Em vez disso foi sentar-se em frente à televisão, para se abandonar àquela inércia suburbana que mata mais devagar.
Certa manhã, teve vontade de lavar os dentes no bidé. Desconfiado, temeu que estivesse a chegar mais uma depressão. Quando começou a lavar os sovacos no bidé, teve a confirmação. Passou a barbear-se no bidé, a lavar a cara no bidé, a fazer toda a higiene pessoal no bidé. O bidé bastava-lhe. Estava feito à sua medida. Tinha a dimensão exacta da sua pequenez dobrada em concha.
Uma semana depois, um amigo emboscou-o na rua e inquiriu-o de coisas:
- Então, Carlos, que tal vai isso?
- Nada bem… olha, ando outra vez a fazer tudo no bidé.
- É pá, isso é que é pior!
Nessa noite, durante aquele estado indefinido entre a vigília e o sono, imaginou-se a cortar os pulsos no bidé. A ver o fio de sangue na volta de despedida antes de seguir pelo ralo.
Levantou-se, dirigiu-se ao bidé para gorgolejar e sentiu vontade de cortar os pulsos naquela peça de louça criada pelo preguiçoso engenho da burguesia.
Mas resistiu a deixar escorrer a vida pelo bidé. Em vez disso foi sentar-se em frente à televisão, para se abandonar àquela inércia suburbana que mata mais devagar.
quarta-feira, 2 de setembro de 2009
Jogos eróticos
Com a fogosidade de um jovem de 20 anos, o velho senhor do castelo ainda corria atrás dos seus fantasmas para lhes tirar o lençol.
terça-feira, 1 de setembro de 2009
Como um profeta
Em cima da mesinha articulada, brandindo um cartão renovado em folha, o plastificador de documentos berrava como um profeta:
- Plastificai os vossos documentos!
- Plastificai os vossos documentos!
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