domingo, 28 de fevereiro de 2010
Hábito
O leiteiro pôs a saca a tiracolo e saiu para a ronda. - Oxalá - pensou ele - não vá aparecer de novo morto à porta de um cliente, como já vem sendo meu hábito.
Fazendo horas
Passava o vida a fazer horas. Um dia, fez uma hora muito grande, enroscou-se lá dentro e ali se deixou ficar, muito quietinho.
sábado, 27 de fevereiro de 2010
Porra, que já nem na praça estamos a gente seguras!
Ameaçada por um meliante com uma pistola de calibre 22, a peixeira respondeu com um bacalhau de calibre 31/40.
O marciano
Ali para os lados do Ourém, foi capturado vivo um marciano. Os autores da proeza foram dois guardas da GNR acabados de sair do restaurante “O retornado”, que lograram atrair o alienígena alegando que ali se comia “bem e barato”.
sexta-feira, 26 de fevereiro de 2010
A frincha
Pela frincha do pano, o actor espreita o público que já se cansou de aguardar o início da peça. E ali fica, a espreitar pela frincha que o liga ao mundo, até o último espectador partir a resmungar.
quinta-feira, 25 de fevereiro de 2010
Romantismo
Mesmo com padre, fotógrafo e bolo de dois andares, não se sentiam unidos para sempre. A vida a dois no apartamento suburbano fora uma vida separada em dois.
Mudaram-se para o farol do tio dela, ninho afastado do mundo onde tiveram dois filhos. Mas nem assim se sentiram um só.
No mar alto, lançaram-se à água de mãos dadas, os peixes como convidados e as algas como alianças.
Ali se tornaram finalmente um só.
Mudaram-se para o farol do tio dela, ninho afastado do mundo onde tiveram dois filhos. Mas nem assim se sentiram um só.
No mar alto, lançaram-se à água de mãos dadas, os peixes como convidados e as algas como alianças.
Ali se tornaram finalmente um só.
quarta-feira, 24 de fevereiro de 2010
A sopa
Era uma vez um homem que gostava muito de sopa mas que, para sua grande infelicidade, não conseguia fazer uma sopa de jeito. Por mais que corrigisse as suas sopas - demasiado grossas ou demasiado aguadas, demasiado salgadas ou demasiado doces -, nunca conseguia dar-lhes aquele gostinho caseiro que uma boa sopa deve ter.
Um belo dia, a avó do homem, uma velha de muitos anos que por ali andava, aproximou-se do panelão. Curiosa como todas as velhas de muitos anos que por aí andam, debruçou-se para espreitar. Escusado será dizer que caiu como uma pedra dentro da sopa. Ploc!
Depois de a passar com a sua varinha mágica especial - fabricada com o melhor aço de Taiwan -, o homem provou a sopa sem grande convicção. Mas mal levou a primeira colher à boca, constatou, para seu grande espanto, que aquela sopa tinha finalmente o tal gostinho caseiro que há tanto tempo almejava.
Um belo dia, a avó do homem, uma velha de muitos anos que por ali andava, aproximou-se do panelão. Curiosa como todas as velhas de muitos anos que por aí andam, debruçou-se para espreitar. Escusado será dizer que caiu como uma pedra dentro da sopa. Ploc!
Depois de a passar com a sua varinha mágica especial - fabricada com o melhor aço de Taiwan -, o homem provou a sopa sem grande convicção. Mas mal levou a primeira colher à boca, constatou, para seu grande espanto, que aquela sopa tinha finalmente o tal gostinho caseiro que há tanto tempo almejava.
terça-feira, 23 de fevereiro de 2010
Versalhes
Quase a perder a vista, o jardineiro real André Le Nôtre contemplava a sua obra a perder de vista, os maravilhosos jardins que tinha projectado para glória do seu soberano e satisfação do seu anseio de harmonia.
Ao fundo, deslizando no grande canal de água, um pato-real olhava em volta e, não vendo ninguém, achava que tudo aquilo tinha sido criado só para ele.
Enquanto isso, à entrada do palácio, os guardas reais corriam a pontapé os primeiros turistas.
Ao fundo, deslizando no grande canal de água, um pato-real olhava em volta e, não vendo ninguém, achava que tudo aquilo tinha sido criado só para ele.
Enquanto isso, à entrada do palácio, os guardas reais corriam a pontapé os primeiros turistas.
segunda-feira, 22 de fevereiro de 2010
Sem abrigo
O sem abrigo dormia junto das escadas rolantes do metro, num colchão rodeado de restos de comida, garrafas, latas, sacos de plástico e outros objectos recicláveis.
Para as autoridades, o problema não era aquele sem abrigo incomodar as pessoas. O problema era aquele sem abrigo não ser reciclável.
Para as autoridades, o problema não era aquele sem abrigo incomodar as pessoas. O problema era aquele sem abrigo não ser reciclável.
O novo recruta
O Correia cumpria a recruta de orelhas a arder. Sempre com alguém a atazaná-lo ou a distribuir-lhe tarefas de rato de laboratório.
Nos tempos livres, tinha ganho o bizarro hábito de recolher refugo: um saco de ráfia, um pedaço de vassoura, uma velha peça de roupa interior... Questionado sobre o porquê, não quis explicar.
Certa noite, levantou-se e saiu da camarata, iludindo os sentinelas de serviço.
Na manhã seguinte, logo que o sol rendeu a noite, os recrutas foram acordados com os cacifos aos berros. Barba feita e pequeno-almoço na garganta, alinharam para os exercícios de “Base 1”. Peitos de galo em manhã de pele de galinha.
O primeiro a vê-lo foi o Menezes, apontando aos outros, com o queixo, o novo recruta.
Estava ali a explicação para o comportamento do Correia.
A uns trinta metros de distância, do lado esquerdo da formação, o espantalho, em posição de à-vontade, ria-se da tropa toda.
Nos tempos livres, tinha ganho o bizarro hábito de recolher refugo: um saco de ráfia, um pedaço de vassoura, uma velha peça de roupa interior... Questionado sobre o porquê, não quis explicar.
Certa noite, levantou-se e saiu da camarata, iludindo os sentinelas de serviço.
Na manhã seguinte, logo que o sol rendeu a noite, os recrutas foram acordados com os cacifos aos berros. Barba feita e pequeno-almoço na garganta, alinharam para os exercícios de “Base 1”. Peitos de galo em manhã de pele de galinha.
O primeiro a vê-lo foi o Menezes, apontando aos outros, com o queixo, o novo recruta.
Estava ali a explicação para o comportamento do Correia.
A uns trinta metros de distância, do lado esquerdo da formação, o espantalho, em posição de à-vontade, ria-se da tropa toda.
sexta-feira, 19 de fevereiro de 2010
Centro de Ajuda Espiritual da IURD
Querido Pastor Renato,
Em desespero, comi fezes de camaleão e acasalei com um babuíno do circo Hermanos Rodriguez. Poderei curar-me?
Valdemiro Lins, Serranópolis do Iguaçu
Em desespero, comi fezes de camaleão e acasalei com um babuíno do circo Hermanos Rodriguez. Poderei curar-me?
Valdemiro Lins, Serranópolis do Iguaçu
quarta-feira, 17 de fevereiro de 2010
Velha automotora
A velha automotora contava ao filho tudo o que vira: os montes nevados, os vales verdejantes, as vilas engalanadas e, nas estações onde parava para descansar, as notícias apregoadas pelos ardinas e as lágrimas vertidas pelos amantes.
Bloodsucking nazi zombies
Só quando se encontrava sob o peso dos sete palmos de terra é que o fanático de filmes de terror começou a duvidar da existência de mortos-vivos.
terça-feira, 16 de fevereiro de 2010
Rivalidade musical
Nos anos 60, havia clubes de fãs da Simone de Oliveira e da Madalena Iglésias, da Sylvie Vartan e da Françoise Hardy, da Simone Iglésias e da Madalena de Oliveira, da Sylvie Hardy e da Françoise Vartan, da Simone Hardy e da Madalena Vartan, da Sylvie de Oliveira e da Françoise Iglésias, da Simone Vartan e da Madalena Hardy, da Sylvie Iglésias e da Françoise de Oliveira…
domingo, 14 de fevereiro de 2010
Bairro de mulata
Plantado no lado batido da cidade, o bairro onde o Tino mora é uma irredutível aldeia gaulesa onde não vigora a lei de Roma.
Filho do bairro, bisneto de África, o Tino torce menos pelo Benfica do que os primos de Angola, não acreditando em pátrias ou amanhãs que cantam.
Tem uma esquina onde se vai recostar no sofá sem molas do pequeno crime para beber o seu concentrado de rua e gemer um rap figadal contra o mundo.
Já tinha assaltado algumas lojas quando resolveu ir três vezes seguidas à mesma missa, uma sedutora casa de doces e licores. Foi apanhado à terceira eucaristia.
Agora, no reformatório, do que mais sente saudades não é da família nem das mulatas de corpo esguio que - como os quivis - cedem ao toque quando maduras, mas das ganzações, gangsterices e grafitanços da sua aldeia gaulesa onde não vigora a lei de Roma.
Filho do bairro, bisneto de África, o Tino torce menos pelo Benfica do que os primos de Angola, não acreditando em pátrias ou amanhãs que cantam.
Tem uma esquina onde se vai recostar no sofá sem molas do pequeno crime para beber o seu concentrado de rua e gemer um rap figadal contra o mundo.
Já tinha assaltado algumas lojas quando resolveu ir três vezes seguidas à mesma missa, uma sedutora casa de doces e licores. Foi apanhado à terceira eucaristia.
Agora, no reformatório, do que mais sente saudades não é da família nem das mulatas de corpo esguio que - como os quivis - cedem ao toque quando maduras, mas das ganzações, gangsterices e grafitanços da sua aldeia gaulesa onde não vigora a lei de Roma.
sexta-feira, 12 de fevereiro de 2010
quarta-feira, 10 de fevereiro de 2010
terça-feira, 9 de fevereiro de 2010
A tournée da nostalgia
Na tournée da nostalgia, as velhas glórias queimavam os últimos cartuchos, tentando em vão incendiar o palco.
A banda era menos de suporte do que de assistência: na guitarra, um reumatologista; nas teclas, um oftalmologista; no baixo, um cardiologista; na bateria, um ortopedista.
À entrada, a organização distribuía ao público andarilhos e arrastadeiras.
A banda era menos de suporte do que de assistência: na guitarra, um reumatologista; nas teclas, um oftalmologista; no baixo, um cardiologista; na bateria, um ortopedista.
À entrada, a organização distribuía ao público andarilhos e arrastadeiras.
segunda-feira, 8 de fevereiro de 2010
Ortodôncia
- Ó pai, os meus colegas gozam com o meu aparelho dentário, principalmente na aula de mordida.
- Deixa lá, filho, que quando fores grande não haverá pescoço que te resista.
- Deixa lá, filho, que quando fores grande não haverá pescoço que te resista.
A última tentação de Cristo
Uma barrica de ovos moles de Aveiro que lhe fez disparar os níveis de colesterol.
sábado, 6 de fevereiro de 2010
Gene Kelly
O rapaz com paralisia cerebral tenta dominar os inoportunos braços e pernas. Depois de vencer mais uma luta contra os quatro lanços de escadas, alcança o seu doméstico Everest. Senta-se à mesa do computador e arruma o corpo.
Com o dedo mindinho, dá início à conversa electrónica: Sara, quando nos conhecermos, hei-de te ensinar danças de salão. Sou um dançarino imparável…
Com o dedo mindinho, dá início à conversa electrónica: Sara, quando nos conhecermos, hei-de te ensinar danças de salão. Sou um dançarino imparável…
quinta-feira, 4 de fevereiro de 2010
Velhos demónios
A velha senhora guardava os velhos demónios numa caixa antiga.
Um dia, ao abrir a caixa à procura de bolachas, o neto deixou escapar os demónios, que se espalharam pela vila.
O leiteiro escorregou, os homens no café insultaram-se com rara violência, o Presidente da Junta matou-se com um tiro de caçadeira e o padre começou a assediar abertamente as criancinhas.
Um dia, ao abrir a caixa à procura de bolachas, o neto deixou escapar os demónios, que se espalharam pela vila.
O leiteiro escorregou, os homens no café insultaram-se com rara violência, o Presidente da Junta matou-se com um tiro de caçadeira e o padre começou a assediar abertamente as criancinhas.
quarta-feira, 3 de fevereiro de 2010
TIR
Para o camionista a milhas da família, era o tempo - e não o espaço - o inimigo que desenrolava a paisagem.
O porco mealheiro
Um misto de avareza e desconfiança levava o gordo a engolir as moedas que queria amealhar.
Quando já tinha mais de mil moedas de um euro no estômago, dirigiu-se ao banco mais próximo para se depositar.
Quando já tinha mais de mil moedas de um euro no estômago, dirigiu-se ao banco mais próximo para se depositar.
terça-feira, 2 de fevereiro de 2010
A cartola
No bosque antigo, as testemunhas aguardam. Sórdidas, necrófagas, translúcidas como um sudário.
O desafiado chega de mansinho, colete receoso sobre camisa adoentada.
Os duelistas aproximam-se. Lançam um olho de mira à barriga de charuto do juiz. Retiram as pistolas da caixa barroca. Viram-se e chocam costados. O lenço branco cai no chão. Vinte passos e estacam. Rodam calcantes. Imobilizam-se como conservadores de museu. Apontam armas e disparam.
Atarantado, o juiz sacode o fumo e tomba direitinho como laje de jazigo, o sobretudo agasalhando a queda.
Os dois homens aproximam-se do corpo morto. Dois excelentes tiros: um mesmo abaixo da orelha esquerda e o outro no meio da pança.
Apanham do chão a cartola do defunto. Agradecida!
Arrumado o palco do pequeno evento, os quatro homens afastam-se pelo campo florido, discutindo vinhos e petiscos.
Um deles leva na cabeça a aristocrática cobertura. Mesmo à distância, dá para ver que também ela graceja.
O desafiado chega de mansinho, colete receoso sobre camisa adoentada.
Os duelistas aproximam-se. Lançam um olho de mira à barriga de charuto do juiz. Retiram as pistolas da caixa barroca. Viram-se e chocam costados. O lenço branco cai no chão. Vinte passos e estacam. Rodam calcantes. Imobilizam-se como conservadores de museu. Apontam armas e disparam.
Atarantado, o juiz sacode o fumo e tomba direitinho como laje de jazigo, o sobretudo agasalhando a queda.
Os dois homens aproximam-se do corpo morto. Dois excelentes tiros: um mesmo abaixo da orelha esquerda e o outro no meio da pança.
Apanham do chão a cartola do defunto. Agradecida!
Arrumado o palco do pequeno evento, os quatro homens afastam-se pelo campo florido, discutindo vinhos e petiscos.
Um deles leva na cabeça a aristocrática cobertura. Mesmo à distância, dá para ver que também ela graceja.
segunda-feira, 1 de fevereiro de 2010
Fuga
Traído pela mulher, deixou tudo e fugiu para África.
Só uma traição assim, gorda e desapiedada, lhe dera asas para escapar a sapatos e gravatas, agendas e semáforos, talheres e televisões.
Agora, com os pés mergulhados no Índico e a cabeça poisada num tijolo cozido ao sol, vai cobiçando os traseiros de melancia que passam. Sem se importar que a chuva lhe caia em cima, como cai em cima dos macacos que não têm medo da chuva.
Só uma traição assim, gorda e desapiedada, lhe dera asas para escapar a sapatos e gravatas, agendas e semáforos, talheres e televisões.
Agora, com os pés mergulhados no Índico e a cabeça poisada num tijolo cozido ao sol, vai cobiçando os traseiros de melancia que passam. Sem se importar que a chuva lhe caia em cima, como cai em cima dos macacos que não têm medo da chuva.
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