Perseguição

Enquanto os animais pastam, o homem interroga-se sobre a linha do horizonte. Fixa-a demoradamente mas não lhe nota movimentos. A linha mantém a atitude de desafio.
O mugido de uma vaca quebra o silêncio da imensidão dos campos. O homem esporeia o cavalo e lança-se em perseguição do horizonte.
Longo espaço percorrido, manada compacta ao longe, mas a linha mantém-se à mesma distância, provocadora.
Até que se apercebe que é ela que se desloca, e à mesma velocidade do seu cavalo.
Decide então refrear a montada e aguardar que a linha do horizonte venha ter com ele.

Encontro casual

Encontrei ontem, por acaso, um idealista vivo. Tinha um ar saudável e até ia a comer castanhas. Convidou-me para ir dar abraços de graça. Disse-lhe que já tinha um jogo de póquer combinado com amigos. Fica para a próxima.

A busca

Chegou ao mítico reino do Preste João. Deu de caras com o El Dorado. Foi ter a Brigadoon. Descobriu o Santo Graal.
Só não conseguiu achar o raio do silvado onde lhe desaparecera a bola de couro que o padrinho Hernâni lhe oferecera pelos seus doze anos.

Santa peluche que baila y esquia

Durante a quadra natalícia, procurou desesperadamente o espírito de Natal da sua infância. Não o encontrou. O Natal made in China plastificara-lhe as ilusões. Desiludido, decidiu ir para o Brasil apanhar Sida.

A espera

Enquanto espera por ela, vai fixando o polícia de giro. Despeito face a respeito. Ar desafiante de quem tem o tempo do seu lado.
Passada a autoridade, tenta apedrejar um ninho e assustar um gato.
Continua a esperar por ela. Está naquele banco do jardim há uma eternidade. Do velho com quem falou já só tem o chapéu farinhento na mão.
Passam carros, pássaros, compras e bicicletas. E passam as horas, sempre iguais.
Não pode esperar mais por ela. O banco do jardim tornou-se demasiado silencioso. Já só lhe ouve um gemido magoado.
Até que ela chega, vagarosa e mansa. O menino da rua abandona-se então nos braços ternos daquela noite de Verão, sua amante e companheira renovada.

Petr Cech

Como as modas são cíclicas - pensou. Com os seus 78 anos, ainda se lembrava do tempo em que os guarda-redes usavam boné.

As chaves

Trazia sempre à cintura um molho de quatro chaves. Com as três primeiras abria portas, cofres e caminhos. A última, enferrujada e torcida, há muito que não via uma fechadura. Servia para abrir corações.

Mais olhos do que barriga

O glutão andava entretido a engolir nódoas de sujidade. Viu o jogo do pack-man e quis ir logo comer os pontos brancos. Acabou esborrachado por um sapatilhão do boneco do Multibanco. É no que dá a gulodice.

Contrato social

Em torno de uma xícara de chá branco e de uma madeleine au biscuit rose, as duas amigas renovam o seu contrato social:
- É como lhe digo, querida amiga, os pobres são tão burros que até comem muito…

Coisas que tenho (IV)

Tenho uma campainha para chamar a fada-a-dias.

Pragmatismo

Os três irmãos organizavam espectaculares torneios de pancada, em formato de mano a mano. O irmão do meio, mais selvagem, coleccionava já vinte vitórias. O mais velho somava treze. O mais novo apenas nove.
Os amigos publicitavam-lhes os combates e cobravam bilhetes aos curiosos.
Assim conferiam utilidade à habitual rivalidade entre irmãos.

Acidente de trânsito

Provocou o pior acidente de que havia memória na aldeia. E não era a primeira vez que punha o carro à frente dos bois.

Escapismo

Tinha as mãos atadas e o rabo preso, mas mesmo assim conseguiu descalçar a bota e dar a volta por cima.

Mortalha de bronze

Ambicionava um bronzeado permanente, daqueles que sugerem invernos nos trópicos e passeios em veleiros. Mas não podia pagar solários ou viagens às Seychelles.
Só teve uma solução: passou a fumar umas "ganzas" e tornou-se arrumador.

Conversa económica

- Eu ia ali pela e ele vinha da. Cruzámo-nos ao pé da e eu perguntei-lhe se. Ele continuou na. E eu nada de.
- E voltaste a insistir em?
- Claro que sim, mas a verdade é que. Olha, ao menos foi bom para.

Coisas que tenho (III)

Tenho uma arma na gaveta para que mais ninguém a tenha.

Apaches

Dizia que não queria acabar como os apaches, sem saber que também ele era apache.

Coisas que tenho (II)

Tenho um globo terrestre para me ver lá pequeníssimo.

Elevação de Águeda a cidade

O amigo, dono de uma pequena mercearia de sucesso, abrira um supermercado e falira. Ele não, preferia ser uma boa vila a uma má cidade.

Coisas que tenho (I)

Tenho um sobretudo novo para agasalhar um mendigo velho.

Tortura

O funcionário da câmara podou a última árvore da avenida e deu o dia por terminado. Quando se afastava, já não ouviu o plátano protestar, com aquela voz vegetal que nem os cães ouvem:
- Foda-se, cortem-me só as unhas!

O mistério das vacas magras

O que é feito das vacas magras do tempo delas?

Ubiquidade

Vivia alegremente nas suas sete quintas.

Instabilidade emocional

O emoticon sofria de uma enorme instabilidade emocional. Ora ria, ora troçava, ora chorava… Um dia não aguentou mais e lançou-se contra um nudge.

Clichés

O pen-friend de Alicante insistia que em Espanha nem todos eram toureiros. A pen-friend do Montana argumentava que no seu país não havia só cowboys. Andaram anos nisto.

Acontecimento social

Estavam bem lançados. Há muito que não se via uma tal festa de inauguração. Mesmo tratando-se de um andar modelo.

Cadafalso

Tinha a corda ao pescoço e a faca e o queijo na mão. Cortou a corda com a faca, comeu o queijo e fugiu.

Honorários

- Não separe o homem o que Deus uniu.
O amante dela fez orelhas moucas e matou-o logo ali.
Foi chato mas poupou-se em advogados.

Cosmopolitismo

Queria tanto ser cosmopolita, que começou a pintar em francês e a fotografar em inglês.

O gorgolejar matinal do informático

Google… Google!... Google!...

Luva no passeio

A luva perdida foi pisada, repisada, chutada, cuspida, congelada…
Dois dias depois, um homem apiedou-se dela e recolheu-a, sem saber que aquela luva desfigurada era a luva que perdera.

Sonhador

Tinha os pés bem assentes na lua.